quinta-feira, 30 de abril de 2009

Causos - A promessa

A PROMESSA

por Márcia Lemos Fonseca

- Dita, 'travessa a portêra, avisa a Comadre Ção que bamo moiá os pé do cruzêro daqui mucadinho, mode vê se chove. Bento, desce pra baxo, avisa o resto do pessoale. Corre 'scriança, 'brevia!... e Rosa tomava as providências, recolhendo as roupas estendidas no varal de arame farpado.
Ali na várzea da Fazenda da Cota, o ribeirão Palmital descia apressado, fartura de água vinda da serra, cortando fundo o chão mole, abrindo caminho pela terra escura, manchada de oca cinza, armando tocaia. Um atoleiro aqui, um sumidouro acolá, buraco largado pela mudança das águas acoli, mas ele continuava, sempre cumpridor da sua sina de ribeirão. Ali os colonos plantavam de ameia com o patrão, e a terra devolvia, abençoada: franja verde, mimosinha, se era roça de arroz; azulega, áspera e barulhenta se era o milho nos beirais do brejo.
Naquela tarde de agosto, porém, frio teimoso, geando ainda, final de panha de café, o que Rosa via era só desamparo: pé de xuxu seco, qualquer aragem esfarelando folha, pé de inhame murcho, tufo de capim esturricado, fiapo de mina minguada, chorinho de água em zigue-zague pelo enrugado do terreno. Nas invernadas o gado desinquieto caminhava pelas beiras de cerca, ora se espalhando pelo escuro das queimadas, procurando broto verde, que o fogo, naquela quadra do ano, surgia do nada, apesar do zelo do patrão, com os aceiros protegendo divisa, preocupação com a mata, os pastos e os cafezais. Mas qual o quê: um descuido, ventinho à toa, e olha o estrago: fogo comendo morro acima, pulando cerca, lambendo arvoredo, queimando mato, madeira de lei, matando sem distinção bicho arisco, criação mansa, um flagelo ao qual só mesmo Deus e Santa Madalena poderiam por fim. Carecendo chuva a lavar a Natureza, amaciando a terra dura, assentando poeira, matando a sede das plantas. Ver o correr da enxurrada pelos cortes da boiadeira, clarão de faísca no meio da noite, ronco de trovão esbarrando no paredão da serra.
Rosa largou a roupa seca sobre o catre e saiu de casa com um facão e uns fiapos de embira. Ali, no monte de lenha, escolheu dois paus roliços, acertou as pontas, lavrou no meio, amarrou com força; fabricou uma cruz tosca que seria levada à frente da procissão. Tirou o lenço da cabeça, estendeu no chão e picou sobre ele folhas de malva. Fez uma trouxa e mergulhou-a na tina d'água, torceu de leve, passando pelo rosto, pelos braços, tirando a poeira, perfumando-se, e as mãos fortes ajeitaram os cabelos. Carecendo um espelho. Fazia tempos que não se via. Andava saudosa de rever seu riso branco, o olhar esperto e meio senvergonho, a cara bonita e lisa. No quarto, o vestido de chita pendurado no prego esperava. Rosa vestiu-o, alisou-o no corpo firme, pegou a bilha d'água, o terço, e estava pronta, quando Comadre Ção aportou, mais a família, cabaça cheia d'água, terço e, na garganta, a voz mais afinadinha de todas, enfeite das cantorias, pois mais fino e tremidinho, só toada de rabeca em folia-de-reis, das bem chorosas. E Rosa, pronta e perfumada, fechou a porta, conferiu com os olhos: a cruz levada pelo menino mais velho ia na frente, o resto da criançadinha ao redor, os cachorros, Comadre Ção e a fé que ela trazia no peito empinado.
Em nome do Pai, do Fio e do 'Sprito Santo... e a procissão seguiu rumo ao cruzeiro de aroeira fincado na frente da casona fazendeira.
Avisada, Liguininha com a filharada mais o marido vieram engrossar a procissão. Negra alta e sacudida, mãe de treze meninos, quando saía com a família, era ver casal de jacu com a ninhadinha atrás: montoeira de jacuzinho tudo encarriado, acompanhando cada passo da mãe. Tal e qual. Liguininha, Rainha Conga, dançarina, torradeira de café e tacheira da fazenda. De janeiro a março era doce de goiaba: cascão, de caixeta, em calda. Doce de pêssego, marmelada, meiando dezembro. Arrumação de capado, fabricação de sabão de cinza, em qualquer época. Liguininha ajeitava o vestido amassado. Tirado do baú, com certeza, já cantando forte, fazendo dueto:
“ ...Bendito seja Jizuis, José,
Joaquim, Ana e Maria
Eu vos dô o meu coração,
E arma minha, inté a úrtima agoniiiiiiaaaaa!...”
O vento soprava forte, vindo das bandas de São Tomé, do Morro do Cascalho, enquanto, aumentada a cada eito caminhado, seguia lentamente a procissão pela boiadeira poeirenta. Agora, a tapera do Izé Largato, à esquerda, mulato surdo e cambaio: estrago produzido por dois raios caídos em seu terreiro, um na porta da cozinha, e o outro do lado de lá, mais pra banda do poleiro das galinhas. Seu Izé ficou medroso com o acontecido: rezou terço no lugar, benzeu, quis mudar de morada, mas o patrão tirou-lhe a idéia, falou que aquilo era por conta dos três jatobás plantados em roda da casa, madeira de cerne, chamadeira de faísca. Rosa pensava diferente: “castigo caído na pessoa errada; aquilo era mode a Chica, mulher dele, sujeita sem pacença, espancadeira de criança e enfezada com os vizinho e com o marido lá dela” Pois com os das outras, Chica era mansa, dengosa, e o mais pior de tudo: dispensava o uso de roupa miúda. “Mode facilitar a safadeza.”
O frio aumentado avisava que a lagoa vinha chegando, água mansa, espraiada, forrada de areia branca e pedregulho, limpa e farturosa de lambarizinhos, que naquele fim de agosto já nadavam de banda, lombinhos rebrilhando, caçando remanso mais fundo.
Na tapera de pau-à-pique, Sá Mariana esperava: a saia comprida, bata rodada, cuité cheio d'água nas mãos velhas, era um fervor só, sabedora da armadilhas da vida, das tramas do destino, parteira antiga, enxergadeira de muitas surpresas boas e más na aparação da criançada da fazenda, daquelas abas de serra, grotas, furnas e escondidos das encostas. Carecia banhar os pés do lenho santo, pedir clemência, fazer louvação. O marido, sentado no calcanhar, pitava no pito de barro, soltando baforadas, o cheiro de fumo exalando. Nem aluiu. Ali mesmo ficou, sistemático, sisudo. “Feiticero, Coisa-Ruim, criaturo do Cão!...”, pensava Rosa, diante do desrespeito do velho serrador. Alteou a voz, em desagravo:
“ Grória ao Pai, ao Fío, Spríto Santo.”
Mais adiante, o terreiro varrido falava do asseio da moradora. De um povo de Muchôco, gente cuidadosa com o que era seu, tratava tudo com um capricho de dar gosto. Banho tomado, gordura nos cabelos das crianças e da mulher, mode assentar os fios mais renitentes. E a botina domando os pés do homem: Tião era retireiro; Geralda, lavadeira da fazenda. Sentia, pela patroa, amor de filha: dona Adélia acabara de criar a menina enjeitada pela madrasta, as orelhas rasgadas para a eternidade, brincos arrancados no muque, pela bandida. “Ô judiação, ô desamparo... Sá Geralda, tão boa, tão sacudida, tão asseadinha. De defeito, só a voz de gralha, fanhosa, áspera, esquisita”, Rosa pensava. Quando Ção, adivinhando seus pensamentos, cochichou: - Sá Gerarda azanga a reza de quarqué um; mania de cantá co'a goela presa. Campanha!!!
A travessia da lagoa foi lenta e cuidadosa: um erguer de saia, arregaçar de calça, e todos enchendo as vasilhas: bilhas, canecas boca-de-piranha, de folha, guampo de boi, vidro vazio, de coalho, cuité. Até caramujo. Tudo era de valia, o Santo não arreparava, não tinha luxo. O importante era a agüinha levada com fé.
Lobo guará uivou no cerrado, vento ventando forte, ajudando a esfriar a tarde. A cava funda reorganizou a procissão, que já se aproximava da casa velha da Cota antiga. O areal, o óleo frondoso, uma cascavel dependurada no arame da cerca, um capão de pita, cana-da-índia, lobeira. No coqueiro seco, tucano fez ninho: apareceu, espichou o pescoço, olhou de banda, se escondeu. Saído do trilheiro de gravatá, João Peão lá evinha, com a viola nos braços, o chapéu assombreando o olhar de candeia, sempre sozinho, escoteiro. Viúvo, não casou mais. Vivia ele mais a viola, que quando tocava, abraçava apertado, cabeça inclinada, assim, amoroso... “Pareceno que tá agarrado é na muié. Êh, consumição!...”, pensava Rosa, entre triste e alegre. Pois João Peão pinicou os dedos nas cordas afinadas e a mulher cantou, feliz:
“ Lovano a Maria, o povo fié,
a voz repetia, de São Gabrié!...”
O telhado da Fazenda aparecia, agora, os ranchos de arreamento, dos bezerros, curral, monjolo, munho de fubá, paiol, galinheiro, a bagaceira, o engenho de cana, e na frente da escadaria, o cruzeiro, rodeado de manacás, em cima do barranco de grama rala, da banda de cá do córgo.
O coração de Rosa bateu apressado, os dedos se fechando com força sobre as contas do rosário. Olhou assim, meio aflita. Foi quando avistou o marido desatrelando a boiada carreira. Um meneio de cabeça, um piscado de olho dele, e ela entendeu: ia esperá-la ali mesmo, no rancho, voltariam juntos para casa; ia esperá-la com seu cigarro de palha pendendo no canto da boca, sua calma, seu cheiro de guiné, que acendia o corpo de Rosa.
Jarra de louça nas mãos, a fazendeira mais as filhas já desciam a escada. Um povão, uma beleza. No alpendre, o patrão ergueu o corpo, tirou o chapéu, em sinal de respeito, mas não desceu; dali mesmo rezava. Ao longo da calçada de pedra, as empregadas e os colonos se achegavam, vieram quase todos, e a cerimônia teve início. Rosa limpou a garganta, olhou, conferiu em volta, fez sinal pra companheira, e o canto ecoou, afastando o silêncio da tarde fria:
“ Bendito sejada, morô bom Jizuis, Remeno, chorano, pregado na cruiz. Pregado na cruiz, padeceno dor, Derramano sangue por nós, pecadô!...”
E a água ia sendo derramada lentamente por cada um, escorrendo pelo tronco ressecado do velho cruzeiro, juntamente com cada pedido de chuva, feitos com toda fé. O canto prosseguia:
“ Santa Maria Madalena,
vai pedi Nossa Senhora
Que chove, aqui na terra,
o tanto que nos móia.
Dai o pão que nos consola,
Pequenos e grandes
morreno de fome!...”
No seu tempo e ordem, deu-se a reza, a ladainha devidamente costurada pela voz do mulherio, tudo bem de conforme, pra que o pedido surtisse efeito. Dali a um pouco, cumprida a promessa e terminada a louvação, Rosa se benzeu, deixando atrás de si a velha cruz de aroeira úmida ainda pela água derramada sobre a madeira; sobre o chão, mancha escura, mijo de boi carreiro, parecendo. O povo se dispersava, voltando ligeiro, criança correndo na frente, menino pequeno pedindo colo, naquele apressado de regresso, eco de voz de alguém, sumindo lá adiante:
Vão' simbora, que a noite lá evém!...
Seguido dos filhotes, o casal atravessou de volta o areial, a cava e a lagoa mais embaixo, na estreita pinguela entre barrancos, pois molhar os pés àquela hora era caçar doença, assunto desconversado. Rosa virou-se, protegendo os olhos, agarrando-se ao marido, quando um vento forte de poeira desceu varrendo o cerrado e a boiadeira, trazendo terra, folha seca, cisco e mais frio.
Vento sem banda, diacho!... exclamou o homem protegendo a mulher, curvando o corpo, apertando contra o seu o corpo macio dela, sua cintura de viola, descansando a mão forte em suas ancas de escora. Rosa gostou, passou as unhas de leve arranhando em agrado os braços de seu homem, sorrindo feliz. Rosa do cheiro de malva, seu sumo de mulher. Os desejos. A lua cheia, lampião no céu, se escondeu atrás do lençol de nuvens, e a noite desceu.
Quando Rosa estendeu o braço procurando o trinco da porta, um clarão ligeiro norteou seus olhos. Assustada, a mulher entrou, conferiu o marido e as crianças naquela semi-escuridão, e um novo clarão mais demorado, um acende-apaga, uma luz em zigue-zague rabiscou o céu. Um tremido forte, um ronco de trovão ecoou na imensidão do escuro. Rosa se benzeu, agradecida, e sorria ainda, quando a porta se fechou sobre a noite, que decerto prometia chuva.

Márcia Lemos Fonseca é escritora, autora do romance "Passagem do Agreste", residente na fazenda Goiabeiras, em Três Corações-MG.

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