Caipira na revolução |
Autor: Contada por Rui Bertoti |
Na Revolução de 1932, um caipira paulista que morava na divisa com o Paraná viu um bando de soldados chegar. Quando lhe perguntaram se ele era de São Paulo ou do Paraná, ele, imaginando que eram de fora, respondeu:- Sou do Paraná, uai! - Ah, é do Paraná? Nós somos paulistas. Desce o porrete nele! Quinze dias depois, outro bando de soldados diferentes chegou e fizeram a mesma pergunta. - Eu sou de Sum Paulo - responde o caipira. - Ah, é paulista! Pois nós somos gaúchos! Desce o porrete nele! Quinze dias depois, ainda moído de pancadas, o caipira viu chegar outro bando de soldados. - Ei capiau, você é de São Paulo ou do Rio Grande do Sul? E o caipira, ressabiado: - Ah, eu sou de ocêis, uai!... |
quinta-feira, 30 de abril de 2009
Caipira na revolução
Causos - A promessa
A PROMESSA
por Márcia Lemos Fonseca
- Dita, 'travessa a portêra, avisa a Comadre Ção que bamo moiá os pé do cruzêro daqui mucadinho, mode vê se chove. Bento, desce pra baxo, avisa o resto do pessoale. Corre 'scriança, 'brevia!... e Rosa tomava as providências, recolhendo as roupas estendidas no varal de arame farpado.
Ali na várzea da Fazenda da Cota, o ribeirão Palmital descia apressado, fartura de água vinda da serra, cortando fundo o chão mole, abrindo caminho pela terra escura, manchada de oca cinza, armando tocaia. Um atoleiro aqui, um sumidouro acolá, buraco largado pela mudança das águas acoli, mas ele continuava, sempre cumpridor da sua sina de ribeirão. Ali os colonos plantavam de ameia com o patrão, e a terra devolvia, abençoada: franja verde, mimosinha, se era roça de arroz; azulega, áspera e barulhenta se era o milho nos beirais do brejo.
Naquela tarde de agosto, porém, frio teimoso, geando ainda, final de panha de café, o que Rosa via era só desamparo: pé de xuxu seco, qualquer aragem esfarelando folha, pé de inhame murcho, tufo de capim esturricado, fiapo de mina minguada, chorinho de água em zigue-zague pelo enrugado do terreno. Nas invernadas o gado desinquieto caminhava pelas beiras de cerca, ora se espalhando pelo escuro das queimadas, procurando broto verde, que o fogo, naquela quadra do ano, surgia do nada, apesar do zelo do patrão, com os aceiros protegendo divisa, preocupação com a mata, os pastos e os cafezais. Mas qual o quê: um descuido, ventinho à toa, e olha o estrago: fogo comendo morro acima, pulando cerca, lambendo arvoredo, queimando mato, madeira de lei, matando sem distinção bicho arisco, criação mansa, um flagelo ao qual só mesmo Deus e Santa Madalena poderiam por fim. Carecendo chuva a lavar a Natureza, amaciando a terra dura, assentando poeira, matando a sede das plantas. Ver o correr da enxurrada pelos cortes da boiadeira, clarão de faísca no meio da noite, ronco de trovão esbarrando no paredão da serra.
Rosa largou a roupa seca sobre o catre e saiu de casa com um facão e uns fiapos de embira. Ali, no monte de lenha, escolheu dois paus roliços, acertou as pontas, lavrou no meio, amarrou com força; fabricou uma cruz tosca que seria levada à frente da procissão. Tirou o lenço da cabeça, estendeu no chão e picou sobre ele folhas de malva. Fez uma trouxa e mergulhou-a na tina d'água, torceu de leve, passando pelo rosto, pelos braços, tirando a poeira, perfumando-se, e as mãos fortes ajeitaram os cabelos. Carecendo um espelho. Fazia tempos que não se via. Andava saudosa de rever seu riso branco, o olhar esperto e meio senvergonho, a cara bonita e lisa. No quarto, o vestido de chita pendurado no prego esperava. Rosa vestiu-o, alisou-o no corpo firme, pegou a bilha d'água, o terço, e estava pronta, quando Comadre Ção aportou, mais a família, cabaça cheia d'água, terço e, na garganta, a voz mais afinadinha de todas, enfeite das cantorias, pois mais fino e tremidinho, só toada de rabeca em folia-de-reis, das bem chorosas. E Rosa, pronta e perfumada, fechou a porta, conferiu com os olhos: a cruz levada pelo menino mais velho ia na frente, o resto da criançadinha ao redor, os cachorros, Comadre Ção e a fé que ela trazia no peito empinado.
Em nome do Pai, do Fio e do 'Sprito Santo... e a procissão seguiu rumo ao cruzeiro de aroeira fincado na frente da casona fazendeira.
Avisada, Liguininha com a filharada mais o marido vieram engrossar a procissão. Negra alta e sacudida, mãe de treze meninos, quando saía com a família, era ver casal de jacu com a ninhadinha atrás: montoeira de jacuzinho tudo encarriado, acompanhando cada passo da mãe. Tal e qual. Liguininha, Rainha Conga, dançarina, torradeira de café e tacheira da fazenda. De janeiro a março era doce de goiaba: cascão, de caixeta, em calda. Doce de pêssego, marmelada, meiando dezembro. Arrumação de capado, fabricação de sabão de cinza, em qualquer época. Liguininha ajeitava o vestido amassado. Tirado do baú, com certeza, já cantando forte, fazendo dueto:
“ ...Bendito seja Jizuis, José,
Joaquim, Ana e Maria
Eu vos dô o meu coração,
E arma minha, inté a úrtima agoniiiiiiaaaaa!...”
O vento soprava forte, vindo das bandas de São Tomé, do Morro do Cascalho, enquanto, aumentada a cada eito caminhado, seguia lentamente a procissão pela boiadeira poeirenta. Agora, a tapera do Izé Largato, à esquerda, mulato surdo e cambaio: estrago produzido por dois raios caídos em seu terreiro, um na porta da cozinha, e o outro do lado de lá, mais pra banda do poleiro das galinhas. Seu Izé ficou medroso com o acontecido: rezou terço no lugar, benzeu, quis mudar de morada, mas o patrão tirou-lhe a idéia, falou que aquilo era por conta dos três jatobás plantados em roda da casa, madeira de cerne, chamadeira de faísca. Rosa pensava diferente: “castigo caído na pessoa errada; aquilo era mode a Chica, mulher dele, sujeita sem pacença, espancadeira de criança e enfezada com os vizinho e com o marido lá dela” Pois com os das outras, Chica era mansa, dengosa, e o mais pior de tudo: dispensava o uso de roupa miúda. “Mode facilitar a safadeza.”
O frio aumentado avisava que a lagoa vinha chegando, água mansa, espraiada, forrada de areia branca e pedregulho, limpa e farturosa de lambarizinhos, que naquele fim de agosto já nadavam de banda, lombinhos rebrilhando, caçando remanso mais fundo.
Na tapera de pau-à-pique, Sá Mariana esperava: a saia comprida, bata rodada, cuité cheio d'água nas mãos velhas, era um fervor só, sabedora da armadilhas da vida, das tramas do destino, parteira antiga, enxergadeira de muitas surpresas boas e más na aparação da criançada da fazenda, daquelas abas de serra, grotas, furnas e escondidos das encostas. Carecia banhar os pés do lenho santo, pedir clemência, fazer louvação. O marido, sentado no calcanhar, pitava no pito de barro, soltando baforadas, o cheiro de fumo exalando. Nem aluiu. Ali mesmo ficou, sistemático, sisudo. “Feiticero, Coisa-Ruim, criaturo do Cão!...”, pensava Rosa, diante do desrespeito do velho serrador. Alteou a voz, em desagravo:
“ Grória ao Pai, ao Fío, Spríto Santo.”
Mais adiante, o terreiro varrido falava do asseio da moradora. De um povo de Muchôco, gente cuidadosa com o que era seu, tratava tudo com um capricho de dar gosto. Banho tomado, gordura nos cabelos das crianças e da mulher, mode assentar os fios mais renitentes. E a botina domando os pés do homem: Tião era retireiro; Geralda, lavadeira da fazenda. Sentia, pela patroa, amor de filha: dona Adélia acabara de criar a menina enjeitada pela madrasta, as orelhas rasgadas para a eternidade, brincos arrancados no muque, pela bandida. “Ô judiação, ô desamparo... Sá Geralda, tão boa, tão sacudida, tão asseadinha. De defeito, só a voz de gralha, fanhosa, áspera, esquisita”, Rosa pensava. Quando Ção, adivinhando seus pensamentos, cochichou: - Sá Gerarda azanga a reza de quarqué um; mania de cantá co'a goela presa. Campanha!!!
A travessia da lagoa foi lenta e cuidadosa: um erguer de saia, arregaçar de calça, e todos enchendo as vasilhas: bilhas, canecas boca-de-piranha, de folha, guampo de boi, vidro vazio, de coalho, cuité. Até caramujo. Tudo era de valia, o Santo não arreparava, não tinha luxo. O importante era a agüinha levada com fé.
Lobo guará uivou no cerrado, vento ventando forte, ajudando a esfriar a tarde. A cava funda reorganizou a procissão, que já se aproximava da casa velha da Cota antiga. O areal, o óleo frondoso, uma cascavel dependurada no arame da cerca, um capão de pita, cana-da-índia, lobeira. No coqueiro seco, tucano fez ninho: apareceu, espichou o pescoço, olhou de banda, se escondeu. Saído do trilheiro de gravatá, João Peão lá evinha, com a viola nos braços, o chapéu assombreando o olhar de candeia, sempre sozinho, escoteiro. Viúvo, não casou mais. Vivia ele mais a viola, que quando tocava, abraçava apertado, cabeça inclinada, assim, amoroso... “Pareceno que tá agarrado é na muié. Êh, consumição!...”, pensava Rosa, entre triste e alegre. Pois João Peão pinicou os dedos nas cordas afinadas e a mulher cantou, feliz:
“ Lovano a Maria, o povo fié,
a voz repetia, de São Gabrié!...”
O telhado da Fazenda aparecia, agora, os ranchos de arreamento, dos bezerros, curral, monjolo, munho de fubá, paiol, galinheiro, a bagaceira, o engenho de cana, e na frente da escadaria, o cruzeiro, rodeado de manacás, em cima do barranco de grama rala, da banda de cá do córgo.
O coração de Rosa bateu apressado, os dedos se fechando com força sobre as contas do rosário. Olhou assim, meio aflita. Foi quando avistou o marido desatrelando a boiada carreira. Um meneio de cabeça, um piscado de olho dele, e ela entendeu: ia esperá-la ali mesmo, no rancho, voltariam juntos para casa; ia esperá-la com seu cigarro de palha pendendo no canto da boca, sua calma, seu cheiro de guiné, que acendia o corpo de Rosa.
Jarra de louça nas mãos, a fazendeira mais as filhas já desciam a escada. Um povão, uma beleza. No alpendre, o patrão ergueu o corpo, tirou o chapéu, em sinal de respeito, mas não desceu; dali mesmo rezava. Ao longo da calçada de pedra, as empregadas e os colonos se achegavam, vieram quase todos, e a cerimônia teve início. Rosa limpou a garganta, olhou, conferiu em volta, fez sinal pra companheira, e o canto ecoou, afastando o silêncio da tarde fria:
“ Bendito sejada, morô bom Jizuis, Remeno, chorano, pregado na cruiz. Pregado na cruiz, padeceno dor, Derramano sangue por nós, pecadô!...”
E a água ia sendo derramada lentamente por cada um, escorrendo pelo tronco ressecado do velho cruzeiro, juntamente com cada pedido de chuva, feitos com toda fé. O canto prosseguia:
“ Santa Maria Madalena,
vai pedi Nossa Senhora
Que chove, aqui na terra,
o tanto que nos móia.
Dai o pão que nos consola,
Pequenos e grandes
morreno de fome!...”
No seu tempo e ordem, deu-se a reza, a ladainha devidamente costurada pela voz do mulherio, tudo bem de conforme, pra que o pedido surtisse efeito. Dali a um pouco, cumprida a promessa e terminada a louvação, Rosa se benzeu, deixando atrás de si a velha cruz de aroeira úmida ainda pela água derramada sobre a madeira; sobre o chão, mancha escura, mijo de boi carreiro, parecendo. O povo se dispersava, voltando ligeiro, criança correndo na frente, menino pequeno pedindo colo, naquele apressado de regresso, eco de voz de alguém, sumindo lá adiante:
Vão' simbora, que a noite lá evém!...
Seguido dos filhotes, o casal atravessou de volta o areial, a cava e a lagoa mais embaixo, na estreita pinguela entre barrancos, pois molhar os pés àquela hora era caçar doença, assunto desconversado. Rosa virou-se, protegendo os olhos, agarrando-se ao marido, quando um vento forte de poeira desceu varrendo o cerrado e a boiadeira, trazendo terra, folha seca, cisco e mais frio.
Vento sem banda, diacho!... exclamou o homem protegendo a mulher, curvando o corpo, apertando contra o seu o corpo macio dela, sua cintura de viola, descansando a mão forte em suas ancas de escora. Rosa gostou, passou as unhas de leve arranhando em agrado os braços de seu homem, sorrindo feliz. Rosa do cheiro de malva, seu sumo de mulher. Os desejos. A lua cheia, lampião no céu, se escondeu atrás do lençol de nuvens, e a noite desceu.
Quando Rosa estendeu o braço procurando o trinco da porta, um clarão ligeiro norteou seus olhos. Assustada, a mulher entrou, conferiu o marido e as crianças naquela semi-escuridão, e um novo clarão mais demorado, um acende-apaga, uma luz em zigue-zague rabiscou o céu. Um tremido forte, um ronco de trovão ecoou na imensidão do escuro. Rosa se benzeu, agradecida, e sorria ainda, quando a porta se fechou sobre a noite, que decerto prometia chuva.
A Literatura da Viola
A Literatura da Viola |
Autor: Texto enviado por Ari Donato, jornalista reside na cidade de Salvador, Bahía |
A viola de arame, de dez cordas dispostas em cinco ordens, aportou no Brasil na metade do século XVI, a tiracolo dos colonizadores portugueses e dos padres jesuítas. Os primeiros trouxeram o instrumento para animar folguedos; os outros, para utilizar no processo de catequização do índio nas terras recém-descobertas. Os três amores 2 3 Mucama tão bonitinha, Morena flor do sertão? A grama um beijo te furta Por baixo da saia curta, Que a perna te esconde em vão... Mimosa flor das escravas! O bando das rolas bravas Voou com medo de ti!... Levas hoje algum segredo... Pois te voltaste com medo Ao grito do bem-te-vi! Serão amores deveras? Ah! Quem dessas primaveras Pudesse a flor apanhar! E contigo, ao tom d’aragem, Sonhar na rede selvagem... À sombra do azul palmar! Bem feliz quem na viola Te ouvisse a moda espanhola Da lua ao frouxo clarão... Com a luz dos astros — por círios, Por leito — um leito de lírios... E por tenda — a solidão! Assim, Desgraça, quando tu, maldita! |
A transmissão da arte de se tocar viola
A TRANSMISSÃO DA ARTE DE SE TOCAR VIOLA
por Rui Torneze
ilustração Júlio Vaz/Reprodução
Certa feita, uma aluno ja adulto, o Cristiano, de origem interiorana lá das bandas de Guaratinguetá-SP, me procurou ávido para o aprendizado do instrumento. Disse-me que seu avô é violeiro na sua região, mas que sempre ao interpelá-lo nas questões relativas aos toques da danada, a resposta era sempre a mesma: "viola não se ensina e se ensiná é bem capaz que o tocador perca a arte". Ao saber que o neto estava sendo iniciado e interessado mesmo, aí é que passou a nem mais tocar por perto, com medo de ter sua magia subtraída pelo rapaz.
Alguns meses depois, ao ver o neto já com relativa desenvoltura ao instrumento, ficou o avô muito contente e passou a convidá-lo para tocar junto, acreditando talvez que a fase mais delicada da "absorção" já teria seu nefasta efeito dado como inócuo.
Confesso que no início do meu aprendizado, há muitos anos atrás, deu-se também nesse mesmo universo. O violeiro observado não podia desconfiar que estava tendo seus toques anotados ou que estava sendo assistido por um interesse além da simples admiração. Perguntar algo sobre os toques? Jamais!
Essa crendice deve ter atrasado a vida de muita gente boa e certamente teve seu efeito contrário.
Sempre digo aos meus alunos que aprendo muito mais com eles com eles do que eles pensam que estão aprendendo comigo.
Viola, hoje em dia, se ensina sim senhor! Vide a Universidade de Brasília - UnB e a Universidade Livre de Música Tom Jobim - ULM - em São Paulo, formando a vanguarda dos violeiros e garanto que os respectivos mestres estão ficando cada vez melhores, quanto maior a horda de seus pupilos.
Porém uma coisa é certa: a parte mais interessante do estudo é o contato em campo direto com os violeiros matutos e sua cultura, pois só assim, bebendo-se diretamente da fonte, é que as sutilezas e as minúcias dos toques regionais e aquele sotaque caipira na execução do instrumento poderão ser assimilados.
A arte da viola caipira nasceu no seio do povo e este é o depositário de sua cultura. Aquele que tem a vontade de dedilhar o instrumento pode até não ter a consciência disso, mas é como um filão de uma jazida, pois já carrega dentro de si preciosas pepitas, bastando apenas que a terra seja revolvida, colocando tais preciosidades ao brilho do sol.
Sou um desses garimpeiros de viola.
A MÚSICA E A VIOLA CAIPIRA
A MÚSICA E A VIOLA CAIPIRA
Diante do inigualável universo que a Música Popular Brasileira possui, a música tradicional caipira apresenta-se como sendo uma das vertentes que mais representa a essência da formação étnica do povo brasileiro
por Rui Torneze
Ou seja, um cadinho onde estão misturadas as contribuições e influências culturais dos povos que aqui estavam, vieram ou "foram trazidos" e que tiveram na viola caipira seu instrumento de expressão e na lida dos afazeres do campo a inspiração natural de suas composições.
À época do Brasil colônia, devido ao incipiente costume dos ditos "homens brancos" de abrirem clareiras com suas ferramentas para construírem suas casas, vilas e plantações, os indígenas, alheios à essas práticas, apelidaram aqueles de "caa-pira" (que cortam mato). Como a viola - denominação de praticamente todos os cordofones até então de Portugal - era utilizada pelos jesuítas no processo de evangelização e o trabalho destes desenvolveu-se em comunidades a princípio isoladas, não tardou à associação do uso desse instrumento por esses pioneiros, daí a denominação até hoje de "viola caipira".
A música caipira é uma manifestação espontânea do povo rural, que reflete o dia-a-dia do trabalho, do lazer, da sua religiosidade e todas as relações sociais existentes nas comunidades interioranas. Está viva pelo fato de mesmo as grandes capitais brasileiras serem constituídas por cidadãos que tiveram na vida rural as suas raízes, sejam daqui ou de seus países de origem. Pela própria história da formação econômica do Brasil, o desenvolvimento deu-se por ciclos econômicos extrativistas vegetais, minerais, agrícolas e industriais, onde nessa mesma ordem a população adentrou do litoral ao interior e deste de volta às regiões próximas ao litoral, já na configuração dos aglomerados urbanos, principalmente à partir de meados do século XX. Diante desses fatos, a grande massa proletária urbana foi e é composta de caipiras. Basta notar que existe ainda concentração de horário de radiodifusão dos programas específicos de música caipira, os quais são, em sua maioria, transmitidos nos momentos do despertar dos trabalhadores (de madrugada) e quando estes retornam (à partir das 17 horas).
Meritoriamente a conotação de caipira, hoje, é associada à qualidade, aquilo que é puro ou especial. Veja os "ovos caipiras", as "comidas caipiras" - relativamente caros, porém de excelente qualidades - assim como a referida música, singela nas suas harmonias e com grande sentimento e profundidade na poesia, tornando-as assim, inesquecíveis e passíveis de atravessar os tempos, dado a sua originalidade e beleza.
ilustração Júlio Vaz/Reprodução
AFINAÇÕES DA VIOLA
AFINAÇÕES DA VIOLA
Em geral as afinações da viola são conhecidas por nomes regionais, populares assim: cebolinha, cebolão, do sossego, etc... Por exemplo, afinação em Mi é a Cebolão. E como muitos violeiros só conhecem uma afinação, afirmam que na viola não há "tom menor", dando só a posição "maior".
Ilustramos com clichês algumas afinações com seus respectivos nomes populares, regionais paulistas. Comecemos com o Cebolão, uma das mais comuns.
Boa afinação para sapateado, por isto mesmo a preferida pelos catireiros, xibeiros, catereteiros e fandangueiros. Em geral os violeiros genuínos dizem que é a mais positiva das afinações: "é a que São Gonçalo ensinou", dizem os seus devotos. Outros, " a melhor para se pisar nas cordas da viola", " não desaparece por mais ferrado que seja o palmeado do cateretê."
A Cebolinha simples é a afinação preferida pelos modinheiros. Fazendo uma pestana no segundo trasto é "quatro paus" para sapateado, "declara bem no bate-pé".
Há outra cebolinha (pelas três cordas) também conhecida por "Ré Acima" ou "Cebolinha pelo meio", apropriado para solar músicas. Nesta afinação, o pai da aviadora Anésia Pinheiro Machado, o itapiningano Gustavo Pinheiro Machado, saudoso virtuose da viola, tocava tudo: desde as modas de viola até Chopin, desde os cateretês mais barulhentos até Brahms. Hoje, ainda os poucos solistas que nós conhecemos, preferem-na às demais.
A afinação Cana Verde ou para Cururu é uma das mais simples (ré-sol-si-mi-lá) utilizada para a cantoria destas duas modalidades.
A afinação preferida para o Fandango, pelo menos foi o que anotamos no litoral sul paulista, é a oitavado, de Guitarra ou Ponteado do Paraná. Os paranaenses do litoral norte, de Paranaguá e adjacências, quando vão em romaria à Iguape, a 6 de agosto de todos os anos, costumam afinar suas violas desta maneira (ré-sol-dó-fá-lá sustenido) Quem sabe vem daí chamarem-na de Ponteado do Paraná. Usada também para ponteio e moda, não apenas para a dança do Fandango, modalidade de dança que está desaparecendo, tanto o fandango rufado ou batido, como o fandango valsado ou bailado.
Sossego ou castelhano é uma das posições pouco usadas, embora seja uma das mais fáceis para execução.
Quatro-pontos - Esta afinação é igual à do violão. Em geral, tocador de violão quando passa a tocar viola, afina-a nesta.
Em Ubatuba, encontramos duas afinações que a princípio julgamos novidade: a de Reza e a de Contoria do Divino. Após exame perfunctório verificamos que as duas nada mais são do que a Quatro-Pontos do serra-acima, que no beira-mar assumiu denominação diferente. Para a Cantoria do Divino a colocação dos dedos é do primeiro ao terceiro trastos, já para a Reza é do quinto trasto ao oitavo.
As afinações variam de região para região brasileira, assim é que existem as chamadas goiana, goianão, ponteado do Paraná, etc. Em S. Paulo, onde os filhos de outras Estados têm vindo para a obra de engrandecimento desta grande forja de trabalho, para os cafezais ou pastoreio, têm recebido a influência dos demais filhos desta grande Nação na sua arte popular e no que concerne à músico ou uso de um instrumento como a viola, o fato é verificável, está ai para ser pesquisado e estudado. Assim é que muitos nordestinos gostam de afinar suas violas em: mi-si-sol-ré-lá. É claro que a inter-relação favorece a influência e a adoção de novos padrões. No entanto, os paulistas genuínos continuam a dar preferência ao Cebolão. É claro que as referências também podem variar, por exemplo em Taubaté, para o Cateretê a afinação é fá sustenido, si-mi sustenido - sol sustenido - dó sustenido.
Diz o velho ditado: "em festa de jacu, inhambu não pia". É bom que me cale por aqui, pois este assunto é para os musicólogos e não para antropólogo que entrevistou 818 violeiros. Pontofinalizamos aqui o nosso estudo sobre a Viola.
As doenças da Viola
AS DOENÇAS DA VIOLA
Basta haver amor por determinada cousa, para que o homem lhe empreste imediatamente certos atributos humanos. A viola, instrumento que maior número de amantes tem tido entre o povo do meio rural brasileiro, por isso mesmo padece das muitas doenças que atormentam o ser humano. A viola se resfria, se "constipa", apanha "quebranto", fica rouca ou fanhosa, se "destempera" e chega até a ficar reumática.
As doenças da viola seriam provenientes desse antropomorfismo que lhe é atribuído pois tem braço, costas, boca, ilharga, orelhas (cravelhas), "cacunda", pestana, etc., ou da afeição que identifica instrumento e tocador?
De médico, poeta e louco todo mundo tem um pouco e o violeiro cuida da saúde de sua viola: contra quebranto, galhinho de arruda no seu interior, jogado boca a dentro em noite de 6a. feira, na primeira após a compra do instrumento; há um processo de magia simpática para dar melhor "voz" às cordas, colocando um guizo de cascavel. E contra todos os fluidos prejudiciais, nada melhor do que uma fita vermelha para desviar o mau olhado e a inveja. E bom violeiro é sempre invejado! Tocar viola é uma cousa tão almejada que chegam a fazer pacto com o diabo na 6a. feira santa, conforme assinalamos em nosso livro "Alguns Ritos Mágicos".
Quer ver violeiro contrariado, é um estranho tocar em sua viola ou pedir licença para "arranhar as cordas". Lá com seus botões o violeiro fica mandando ele arranhar... Bem, não diz nada, mas pensa. A mão de estranho "destempera" porque transmite eflúvios maléficos ao seu instrumento. . . é pior do que se "botasse mau olhado".
Além da fita, e esta não deve ser confundida com aquelas de promessa que os violeiros das folias de Divino carregam como ex-votos, raro é o violeiro que não tenha escondido um amuleto sanitário: uma figa, um signo de Salomão, intrometido na palheta.
Há violas que se "constipam", isto é, que se resfriam só pelo fato de serem guardadas com as cordas encostadas á parede que lhe transmite umidade. Violeiro que se preza não a dependura assim e sim a mete num saco para guardar num gancho ou prego. À noite estando sozinha, sente frio, porque nas braços do violeiro, ela sente calor. Mas, há violas que precisam tomar sereno para ficar com boa voz, para "declarar bem". Outras, com o sol se arruinam e chegam a se "destripar", descolam o tampo dos aros: é a insolação.
Antes de guardar a viola, deve-se passar um pano sobre as cordas, num sentido só, "para não lhe tirar o sentido", endoidecê-la: do trasto para a palheta, assim ela não ficará fanhosa.
Até o enfeite das violas é amuleto sanitário: a pintura de flores em sua tampa ajuda a afastar o quebranto. E as flores escolhidas são aquelas onde predomina o vermelho, por exemplo, as flores da maravilha (mirabilis jalapa, Lin.) com as quais as crianças ainda hoje fazem colares e antigamente os violeiros, principalmente os negros, colocavam-nas na pescoço nas romarias de São Gonçalo ou nos pousos de cururu. E' por isso que Antonio Adão (Antônio Rodrigues de Lara) - o poeta das flores, pretalhão de dois metros de altura, tem uma viola cheia de fitas e flores de maravilha pintadas, como assinalou o folclorista João Chiarini. E' a constância de certos traços culturais que permanecem. E' uma forma medicinal de evitar as doenças de sua viola que foi feita pelo saudoso piracicabano Juca Violeiro (José Antônio Maria), mulato quase centenário que ali no Bairro Alto, à rua Morais Barros, na minha cidade natal (Piracicaba) fazia violas, verdadeiros Stradivarius caipiras - mochinhos e violas - guardados alguns exemplares nesse fabuloso museu do "Centro de Folclore de Piracicaba".
Não há viola lunática, mas todas sofrem influência da lua. Na lua nova e "na força da lua" não se guarda viola afinada, ela pode ficar "corcunda", entortar, "estuporar", bem como rebentar a corda. Madeira para viola deve ser cortada nos meses que não tem "r" (maio, junho julho, agosto) e na minguante para nunca apanhar caruncho, Viola com caruncho é leprosa...
Violeiro que se preza não carrega viola debaixo do braço e sim na mão, segurando-a pelo seu braço. "Viola é mulher, e quem sai com ela na rua, vai de braço dado. Violeirinho de meia pataca é que põe a viola debaixo do braço. O sovaco é lugar de encostar a muleta e não a viola". Viola carregada debaixo do braço fica reumática, não afina mais, fica mancando das cordas.
Embora o viola tenha lá suas doenças, é inegável o poder que ela possui para curar as doenças quando tocada em romarias para São Gonçalo do Amarante. A viola nas danças do santo português - padroeira dos violeiros, além de arrumar casamento para as moças que vão ficando para "tias", cura também reumatismo. Quem num cateretê "pisar nas cordas da viola", isto é seguir-lhe o ritmo, sem errar, jamais ficará doente dos pés, das pernas, nunca terá "veia quebrada" - varizes. E' portanto um preventivo maravilhoso que só os catireiros têm o privilégio de possuir.
Se por um lado há doenças da viola, por outro ela tem grande função medicinal. Ela cura as doenças, mata a saudade, elimina a tristeza, realiza a psicoterapia profunda melo-medicinal. Acontece que a função medicinal da música é cousa velhíssima O grande salmista Davi, conforme registra a Bíblia, tocava a sua harpa para alegrar o hipocondríaco Saul para curá-lo da misantropia que o assaltava de vez em sempre.
Repete-se com o instrumento predileto do nosso caipira - a viola - o mesmo destino medicinal da harpa - ela cura as doenças dos homens tristes. Quem resiste à alegria contagiante de um cateretê riscado nas cordas de uma viola? Qual é o reumático que não entra e desenferruja os ossos sob o ritmo desencarangador de uma dança de São Gonçalo? Qual é o "descadeirado" que não participa da um fandango valsado ou toma o "suadouro" de um "recortado" de fim de pagodeira quando os violeiros já entrevem "barra do dia" dealbando no horizonte e a função vai se smorzando?
A lei da compensação ai está: o bom violeiro cuida de sua viola para que ela não apanhe doenças, seja sempre sã, e ela recompensa, uma boa viola, bem tocada dá alegria para o homem e já dizia Salomão nos seus Provérbios: "O coração alegre aformoseia o rosto, mas pela dor do coração, o espirito se abate".
E' por isso que "violeiro morre é de velho"
Origem da Viola Caipira
A viola é por excelência um instrumento musical do meio rural, sendo muito disseminada em nosso país, e encontrada nos mais longínqüos rincões do sertão brasileiro.
Sua origem é remota. No baixo latim encontramos: vidula, vitula, viella ou fiola, mas nenhum destes vocábulos serviu para designar a nossa viola. Tratava-se de um violino pequeno, um tetracórdio. Era a viola de arco, uma espécie de rabeca. Mas a nossa viola é também bastante idosa, veio de Portugal e ao aclimatar-se em terras brasileiras sofreu algumas modificações, não só em sua anatomia como também no número de cordas. É a lei da evolução. Evoluiu tanto que nós conhecemos no Brasil cinco tipos distintos de violas de cordas de aço: a paulista, a goiana, a cuiabana, a angrense e a nordestina. Dos tipos mencionados, estudaremos apenas a paulista e a angrense pelo fato de serem as mais conhecidas e encontradas com maior freqüência em nosso Estado.
A viola é o instrumento fundamental do "modinheiro", é cordofônio, pois suas cordas comunicam sua vibração ao ar. Serve para acompanhamento de canto e dança. Pode ser tocada só, executando solos, em dupla, o que é muito comum ou para acompanhamento.
Ao lado da viola, porém com menor freqüência, encontramos a rabeca, também oriunda de Portugal. Parece que a rabeca foi no passado a companheira inseparável da viola, sendo atualmente olvidada, quase que só encontrada no litoral. A rabeca não dispensa a companhia da viola, pois não costumam fazer solos de rabeca. Completando a enumeração de cordofônios tradicionais, preciso é mencionar o cocho, viola rudimentaríssima, hoje completamente esquecida. Dele tivemos conhecimento ocasionalmente em Tietê, por ocasião de um Cururu rural, num pouso da Bandeira do Divino Espírito Santo, em outubro de 1947.
A urbanização da viola, isto é, a sua entrada nos palcos e hoje nos auditórios das estações de rádio e televisão, devemo-la ao saudoso folclorista paulista Cornélio Pires, que em 1910 organizou um programa de violas no palco da cidade de Tietê e pouco mais tarde, num festival em São Paulo, no então Mackenzie College.
O violão, que na urbanização da viola está ao seu lado, goza atualmente na cidade tão larga difusão que podemos dizer que é o instrumento do meio urbano. O violão já foi largamente desacreditado. Tocador de violão era sinônimo de vagabundo. Graças ao velho Catulo da Paixão Cearense, o violão hoje anda nas mãos das "granfininhas". E que realeza tem um violão enfeitado pela Inezita Barroso! Bem, voltemos à nossa viola.
Quando os portugueses aqui chegaram, ao lado do desejo de trabalhar na dura lide de povoar e colonizar as terras cabralinas, trouxeram também algo que encheria os momentos de lazer. As danças e os cantos camponeses, a viola, a rabeca, o adufe, o triângulo, a tarola, o culto a São Gonçalo, as Folias de Reis e do Divino Espírito Santo e os votos de comer e beber na Igreja, estes já codicilados e condenados nas Ordenações Filipinas. Na terra além-mar eles iriam viver e, as danças, cantos, cerimônias religiosas contribuíram para anular a nostalgia.
A viola de arame, de Braga (Portugal) ou viola braguesa, ao chegar ao Brasil parece não ter evoluído muito, ao ponto de vista social, como aconteceu com sua irmã rabeca, que tomando ares civilizados, com roupagem mais sólida, tornou-se o aristocrático violino que subiu para os coros das igrejas católicas, deixando cá fora, nas soleiras das portas das choupanas, aquela que é mais rica em número de cordas, porém pobre nos atavios, feita até hoje de tábuas de caixão.
Não possuímos um regular acervo de elementos para comparar a antiga viola braguesa com a atual viola caipira. No presente trabalho não temos em mira apresentar os resultados de uma pesquisa histórica desse instrumento, como nos sugeriu Mário de Andrade, em 1943, mas deixamo-lo em andamento. Estamos ainda colhendo documentação. Apenas queremos afirmar que si fora instrumento popular entre os campônios portugueses, qual a guitarra, aqui é também popular entre os caipiras e caiçaras. Viola artesanal sendo
feita em Tatuí, São Paulo.
A viola veio da cultura ibérica, onde parece ter surgido por influência dos mouros. Gustavo Pinheiro Machado (progenitor da aviadora Grésia Pinheiro Machado) era um virtuose da viola e afirmava em uma moda de sua autoria que "a viola tinha pais portugueses, o violão tinha pais espanhóis, ambos eram netos de mouros e bisnetos de hebreus".
Não há dúvida que tenha sido introduzida pelos portugueses. Gabriel Soares de Souza, a ela se refere. Joaquim Ribeiro, no seu precioso "Folclore dos Bandeirantes" fala sobre a moda... e não há moda sem viola. Nos mais antigos documentos que temos manuseado, nos inventários do Arquivo do Estado, sobre a viola há apenas referência determinada e jamais qualificativa. O mesmo se dá com a "rabeca com seu arco de crina do dito instrumento de folia". Cremos entretanto que a vida nômade dos sertanistas e bandeirantes não impedia o uso da viola. Trago para estas páginas o testemunho insuspeito de meu avô materno, Virgílio Maynard, tropeiro, que dos 12 aos 60 anos anos de idade, isto é, desde 1870 palmilhou as ínvias estradas do Rio Grande do Sul a São Paulo. Contava que nunca vira seus peões e camaradas viajarem sem sua viola, quase sempre conduzida dentro de um saco, amarrada à garupa de seu animal vaqueano. Não havia pouso que após o trabalho azafamado do dia, não tocassem antes de dormir o sono reparador. Quando a zona era infestada por animais ferozes e havia necessidade de dormir com o fogo aceso noite a dentro, o violeiro, no interregno de lançar achas ao braseiro, plangia sua viola dolentemente.
As violas mais antigas que temos tido conhecimento são feitas à mão por algum "curioso". É recente sua industrialização. As violas feitas em série e vendidas a baixo custo são inferiores em som às feitas à mão. Tiveram porém, o privilégio de desbancar aquelas, sendo hoje raríssimo encontrar "fazedores de viola". Embora o violeiro dê preferência à feita à mão, economicamente se vê obrigado a comprar a industrializada. E digno de nota, estas são vendidas nas "Mecas" do catolicismo romano em nosso Estado. Assim podemos ver em Pirapora do Bom Jesus, Aparecida do Norte, Bom Jesus de Iguape e Bom Jesus dos Perdões, onde os romeiros, na sua maioria gente da roça, aproveitam para cumprir suas promessas e fazer sua "comprinha". Nessa Mecas, ao lado das belíssimas manifestações de fé ou histeria coletiva, da sinceridade, da promiscuidade que a falta de acomodações facilita, da jogatina "inocente", há manifestações riquíssimas do folclore: o linguajar característico, danças com indumentária garrida, trajes e costumes diferentes, oferecida de ex-votos que em geral são peças esculturadas ou pintadas, enfim se põe em contato com um mundo de coisas que bem merecem um estudo acurado de um sociólogo. Nos quatro lugares acima mencionados, pudemos em 1946,1947 e 1948, constatar a venda de violas industrializadas e as raras feitas à mão e ao mesmo tempo confirmar a diferença que havíamos notado entre a viola de beira-mar e a de serra-acima.
A linha divisória seria tomada pela Serra do Mar, pois este elemento geográfico também delimita em parte os costumes, nos dando marcantes diferenças entre o caiçara do litoral e caipiras do interior. Comprovamos o fato da influência geográfica nos usos e costumes com o fato de em Xiririca, Jacupiranga, Miracatu, Sete Barras, Registro e mesmo Iporanga, serem bem distantes do litoral, mas muitos de seus usos e costumes serem idênticos aos de Cananéia e Iguape. Há grande identidade na linguagem, nas danças como o Fandango, Congadas, Folias de Reis e também no uso da viola ao lado da rabeca. Até nos implementos das danças, como seja o tamanco para o fandango rufado, os feitos no litoral são idênticos, até na escolha da madeira e fixação da contra-alça, aos das cidades marginais do Rio Ribeira.
É claro que os acidentes geográficos, os meios de comunicação influenciem os usos e costumes. A facilidade de compra de um instrumento contribui para que se generalize a sua adoção. Assim é que, antigamente, os moradores de Cunha, que levavam dois dias para ir até Guaratinguetá ou Aparecida, e apenas um para ir até Parati, no litoral fluminense, adotaram a viola do tipo angrense ou do litoral. É largamente disseminado como o é no litoral o uso da rabeca, até mesmo na dança de Moçambique. Com o estabelecimento da estrada de rodagem, a ligação diária por meio de ônibus entre Cunha e Guaratinguetá até os moradores de Taboão, encostados na Serra do Mar, preferem hoje adquirir suas violas em Aparecida do Norte. Aliás, fenômeno idêntico podemos constatar em São Miguel Arcanjo, no sul do Estado. Devido ao fato de descerem anualmente, por ocasião das romarias de 6 de agosto ao santuário de São Bom Jesus de Iguape, para o cumprimento de promessas, encontramos alguns traços da cultura material litorânea entre os caboclos dessa zona. Zona que no passado esteve circunjacente às estradas de tropeiros. Mas anotamos a presença de panelas de barro do Peropava, bairro de Iguape, e até a viola do tipo do litoral, feita em Guaxixi, bairro de Cananéia, vendida em Iguape.
Bem Vindos ao Mundo Caipira

Ôh di casa cumpadi !
Recebi tuas carta e to bem mais qui mió.
Meu zóio tão briându,
qui é só voismicê oiá.
Intonces agora os vagalume alumia lá longe
e eu inxergo daqui as luz delis.
Meu coração andô duídu de saudade
mais agora que tua carta chegô...
ele ta melhor que bão.
Ele ta intero cheio di amor
cumpadi pode chegá
que to na precisão
dus teus braços, pra mi abraçá !
Kate Weiss