quinta-feira, 7 de maio de 2009

Conversa de Caboclo

CONVERSA DE CABOCLO

Logo que a estrada de ferro Rio-Minas chegou ao município de Três Corações do Rio Verde, MG, a curiosidade dos locais, principalmente os chegantes das roças, dava margem pra criatividade natural do caipira. Corria gente de todo lado tocada por aquela novidade: bichão esfumacento que ronca e berra cumo o cão!

Não demorou, dois camaradas da fazenda da Cotta - região de São Tomé das Letras, mas mais cá em baixo, perto das barrancas do Rio Verde, onde o progresso era palavra sem serventia, pois que a vida ali era como Deus mandava e a toada era sempre a mesma - foram dar com o costado na cidade pra espiá de perto o bruto, como foi logo chamada a composição novidadeira. Hora e meia antes da chegada do horário, já eles estavam na estação, numa espera impaciente.

Quando o trem se avizinhou na curva do Canto do Rio, a locomotiva apitou, anunciando a aproximação. Era ver o inferno fumegante se achegando.
- Ara, bicho de berro bão, sô! - disse um deles - Isso sim! Isso é que eu chamo tê sustança. Óia só procê vê!

Após a chegada, enquanto os passageiros desembarcavam e havia a manobra habitual, os dois companheiros não contiveram de curiosidade e foram espiar de perto aquela trapizomba, noticiando o descoberto:

- Ô lôco, cê é bôbo, sô! Mas me diga só uma coisa: que idade tem esse bicho? Cê tá é besta...

- É... cumo esse eu nunca vi! Cumé que esse dianho pode cum tanto carro na cacunda?

- Tão dizeno que ele saiu ´inda hoje lá dos Rio de Janêro... vai tê fôrgo ansim no inferno!

- É, cumpade, mas ele tá suado, espia só: tá pingano suó daquele cano. Ele tá mas é afrontado... despropósito sem tamanho!

- Que o quê! O bicho já véve no prumo, tá acostumado na lida. Inda agora, se ele estralasse na junta, ia batê com o costado de novo lá no estado carioca.

- Isso sim, que beleza! Num tem de ponhá cangaia, espia, nem num tem que dá de comê, é só água e fornaia quente... mas é carvão pra mais de metro, cê é bobo, sô! Agora, tem uma coisa: se esse um enfiá o dedo no cadarço da cerôla, num aproveita nem o côro de quem tá dentro...

O maquinista, que tava ali assuntando o diálogo, quis dar um susto naqueles dois e puxou o cordão do apito. Os peões pularam, arregalaram os olhos - mesmo que ver o capeta - um com o chapéu nas mãos fazendo o pelo sinal e o outro o apertando forte de encontro a cabeça, como arma de defesa. Foi que, enfim, um deles falou:

- Corre, cumpade, simbora que o bicho tá estranhano nóis!...

Conto de Pinho inspirado em texto do livro “Cantadores”, de autoria de Leonardo Motta, de 1921, Livraria Castilho - RJ.

ANATOMIA DA VIOLA

ANATOMIA DA VIOLA

A viola compõe-se das seguintes partes: caixa de ressonância, boca, braço e palheta.

CAIXA DE RESSONÂNCIA

A caixa de ressonância é conhecida pelas seguintes designações: caixa, bojo, ou corpo.

A caixa é composta de um aro e duas tampas. O aro pode ser inteiriço, ou em dois pedaços, sendo coladas as suas extremidades quando na forma, ficando a emenda embutida no taco de segurança do cavalete. Usam cola vegetal de sumbaré. O aro é que tem as curvas. Para execução dessas curvas, uns fabricantes usam formas, outros fazem a "olho" Aliás o "olhômetro" é o grande aparelho de precisão com patente nacional brasileira.

Na tampa da frente, ou "peito da viola", ficam o cavalete e a boca, isto é, uma abertura, que põe em comunicação a caixa de ressonância com o exterior. Paralelamente ao cavalete fica o rastilho, peça não fixa de taquara. A tampa posterior ou "costa" é inteiriça, uma tábua só sem emenda.

Na construção da caixa de ressonância entram as seguintes peças: 3 travessas para sustento da tampa posterior, 2 travessas para sustento da tampa anterior, taco de segurança do cavalete, armação para o braço (ficando para o lado de fora o gastalho). O aro, onde internamente são grudadas as viras de filete, para resistência, ou contra-fortes, onde serão coladas as tampas.

Empregam-se as seguintes madeiras no aro: guaiuvira (preferivelmente), jacarandá, canela saçafrás. A espessura do aro é de 2 mm. Nunca é mais grosso porque a madeira tem que entrar na forma fazendo as curvas, quanto mais fina, mais flexível. As tampas são feitas preferivelmente de pinho, porque dá maior sonoridade. O tampa das costas às vezes pode ser feita de cedro ou canela, mas a da frente sempre é de pinho. Devem ser madeiras bem secas. Dizem que a madeira deve ser cortada na lua minguante de mês que não tem "r" para durar mais, ser flexível e também não carunchar. As tampas que são de 2 a 3 mm de espessura, geralmente feitas de tábua de caixão de pinho. O fabricante entrevistado costuma comprar caixões, desmancha-os e guarda as tábuas num lugar seco durante 2 ou mais anos, "pra ficá cum mais alma", isto é, melhor som. Primeiramente, antes da guerra, o Sr. Zico Brandão, famoso fabricante, adquiria caixões de pinho de Riga, que davam as melhores violas que até hoje fabricou.

A largura do bojo é de 25 centímetros, onde se cola o cavalete, e a menor é de 18 centímetros, na parte inferior deste, no centro da cintura que dá um pequeno estrangulamento fica a abertura, a boca.

A caixa de ressonância às vezes é invernizada. No pequeno tamanho da caixa de ressonância da viola paulista, em contraste com o grande tamanho da caixa da viola do litoral, é que reside boa parte da diferença entre estes dois tipos de viola.

BOCA

A abertura que põe em comunicação a caixa de ressonância com o exterior é a "boca". A boca da viola pode ter diversas formas, sendo a mais comum em forma de coração para as feitas à mão, e circulares, as estandardizadas pela máquina.

Outros tipos de "boca" encontradas entre as violas feitas à mão: dois corações, estrelas, coração e raramente o losangular.

Ao redor da "boca" é costume fazer alguns desenhos ou encastoar malacacheta. Os desenhas são pirogravados. No litoral encastoam pedaços de conchas, e no serra-acima, malacacheta.

Os desenhos, "enfeito" como dizem, em geral são pirogravados, mas também temos encontrado feitos a lápis, tinta de escrever, e em Piracicaba, uma riquíssima viola com uns desenhos a óleo e o apelido daquela cidade, "Noiva da Colina".

Há violeiros que mandam escrever seus nomes ou apenas iniciais. Outros, algumas frases, nome de mulher. Zico Brandão pirogravou em sua viola: "Os reis da viola", ao lado do desenho de um "pinheiro". Flores estilizadas, em geral é o "enfeito" mais encontrado.

BRAÇO e PALHETA

A haste ou "braço" compõe-se de duas partes distintas: braço e palheta. Muitos violeiros chamam aos dois tão somente de braço. Aliás, na viola há muitos nomes das partes do corpo humano usados para denominações e isso revela que o nossa caipira empresta ao instrumento predileto um pouco da anatomia humana: boca, "cacunda" ou costa, braço, pestana, cintura, ilharga, cabeça da tarraxa e o mais importante é que a viola tem alma. E o inverso também serve para comparação: moça bonita de corpo bem proporcionado é "corpo de viola", e. . . com as nádegas um pouco avantajadas é "corpo de violão", ou "cintura de violão".

Mas, voltemos ao braço da viola. Nele estão os trastos ou pontos, divisões de metal. Na parte superior do braço está a palheta e como já apontamos ela é enfeitada, lisa ou "trabalhada".

Na palheta estão os artifícios onde se ajustam as cravelhas para a afinação. Cravelha vem do latim, clave, que deu chave, "clavelha", chave pequena e ficou cravelha. Nela distinguimos três partes distintas: orelha ou chapinha, corpo e pique ou furo onde a corda é enroscada ou enfiada.

Quando nos referimos ao número de cordas, convém lembrar que há uma diferença entre as violas do litoral (tipo angrense) e nas quais os caiçaras usam apenas 7 cordas. Nestas violas (Cananéia, Iguape, etc.), é comum encontrar-se uma outra corda que não atinge o braço todo e a cravelha não se aloja na palheta; há, grudado por fora do gastalho um pequeno dispositivo onde está a pequena cravelha. A este conjunto chamam de "piriquito" ou benjamim (ver figura abaixo). Nas violas do litoral há portanto uma pequena corda (a oitava), chamada cantadeira, fica acima do contra-canotilho e afinada em uníssono com o contra-bordão ou melhor, contra- canotilho. No serra-acima paulista, principalmente nas zonas antigas onde não há influência nordestina ou outras, o que se dá realmente nas zonas pioneiras, novas, os caipiras usam encordoar as suas violas com uma dezena de cordas. Dizem que a viola tem dez cordas, porque dez são dedos da mão. No entanto já vimos violas com 12 cordas e até 14 como aquela célebre feita por Zico Brandão de Tatui - "o rei da viola", cuja caixa de ressonância era feita de casca de um tatú-etê. Viola que merecia figurar num museu.



Sobre as partes da viola, antes que falemos das cordas, da sua ordem e "tempero"', isto é afinações, transcrevemos uns trechos de uma toada cantada por Amaro de Oliveira Monteiro, poeta violeiro de São Luís do Paraitinga, recolhidos no dia 19 de setembro de 1948:




I

"Viola, minha viola,

vamo no campo chorá,

você sabe e não me conta

onde meu amor está".

II

"Chora viola sentida

nos peito de quem padece

sê minha viola sabe

quem meu coração não esquece".

III

"Minha viola é testemunha

do que eu tenho passado,

muita mágua dolorida

ela tem me consolado".

IV

"A viola é bençoada

por a folia acumpanhá,

inté no braço de santo,

a viola já foi pará".

V

"No braço de São Gonçalo

a viola já tocô

por ela sê abençoada

nos braço dele ficô".

VI

"Toda viola é interiça

é feito de doze pedaço,

as cravêia e os ponto

e as corda são de aço".


VII

"Este pinho tem cacunda

tamém é feito com cola,

e pode somá a conta

que intera doze co'a viola".

VIII

"A viola tem banda e braço

aonde toco meus pontiadão,

seguro ela pelas iarga

e faço chorá dois coração".

IX

"Viola, minha viola,

cavalete de canela,

no tampo e o buraco

que afirma os tempero dela"..

X

"Viola, minha viola,

rastilho de coquero,

eu faço as pedra rolá

quano pego neste pinhero".

XI

"Viola, minha viola,

foi feito de jacarandá,

quem tocá esta viola

vai no céu e torna voltá"

XII

"Esta moda vai de lembrança

como prova de amizade,

pra quano tocá viola

pra de nois tê saudade".

CORDAS, ORDEM E "TEMPÊRO"

Em geral as cordas são de metal, mas já houve tempo em que se fazia corda das tripas de mico, macaco, coati e até ouriço. E houve muitas violas cujas primas, segundas e terceiras e contra-canotilho eram de origem animal. Antigos violeiros de Tietê afirmaram ser excelentes. Ouvimos também no litoral tal afirmação. Antigos violeiros inquiridos nessa região, contaram-nos que eram muito mais duráveis, pois as metálicas, devido ao ar marinho, enferrujam facilmente. Hoje os cordas são de seda e até de nylon.

Quanto a ordem das cordas da viola, indicaremos o de uma encordoada por violeiro destro e não canhoto, conforme clichê publicado em número anterior. Por exemplo, numa viola piracicabana, um mochinho de Borbosão do Centro de Folclore de Piracicaba, certa feita anotamos o material das cordas: canotilho de seda e a companheira do conotilho era de metal amarelo nº 10; toeira (ou tuêra) era de aço, coberta e a companheira era de metal branco nº 9; a contra-turina e turina eram brancas (isto é, aço) de nº 9; a contra-requinta, branca n.0 9 e a requinta, amarela n.0 10, e finalmente, contra-prima e prima eram de aço, branca n.0 10.

Alguns caipiras guardam ainda o termo folclórico para designar as cordas de aço nº 9 e 10, chamam-nas de verdegais, o que nos fazem lembrar o nome das cordas da guitarra portuguesa. Aliás, a origem dos nomes das cordas nos dizem que o vocábulo conotilho vem do italiano "canatiglia". Toeira vem de toar, isto é, dar som forte, soar. E' o mesmo nome usado na guitarra, são as imediatas aos bordões. A toeira é a corda que tem som forte. A requinta é além de uma espécie de clarinete de som agudo, a denominação de viola ou guitarra, pequenas, muita menores do que essas comuns nossas conhecidas, assim do tamanho do mochinho piracicabano. João Chierini pode orgulhar-se de ter uma das mais completas coleções de "requintas" no Centro de Folclore Piracicabano. E a turina, donde virá? De Turim? Não. Analogicamente sua origem deve vir de turi, espécie de clarim usado na Índia durante o cerimonial da cremação. E dizem os violeiros que os turinas são as cordas mais chorosas da viola!



Tomam cuidados especiais para que a viola, quando guardada não fique com as cordas encostadas à parede porque ela "constipa", isto é, se resfria. A umidade enrouquece a corda.

Duas causas fazem a viola sofrer: calor ou frio intensos. No entanto, ela é muita mais sensível ao mau olhado e a inveja que destemperam a viola, e jamais pegará afinação. Para evitar, usam dentro da caixa de ressonância, um pequeno galho de arruda, lasca de guiné, dente de alho. E para dar eletricidade às cordas, maior sonoridade, só o guizo de cascavel. É, e não resta dúvida, magia simpática. E violeiro que se preza não se esquece de colocar um guizo de cascavel em sua viola.

Tempero é a afinação. Esta varia muito. Dizem alguns caipiras paulistas que há vinte e cinco afinações diferentes. Mas o número 25 para eles significa imensidade, o incontável, multidão. Conhecemos as seguintes afinações para violas da serra-acima paulista:cebolão, cebolinha, ré-abaixo, castelhana, quatro-pontos, oitavado, tempero-mineiro, tempero-pro-meio, guariano, guaianinho, guaianão, temperão, som-de-guitarra, cana-verde, do sossego, pontiado-do-Paraná.

A preferência pelas afinações varia muito. Para cantar moda, a melhor afinação é o quatro-pontos e para cururu é afinação cana-verde. Cebolinha é boa também para moda. Cebolão é muito usada para dança do cateretê. Os violeiros mais jovens, e muitos dos que hoje militam nos rádios não conhecem tais afinações, suas violas são afinados como violão. Para moda de viola, na região do médio Tietê, os violeiros usam estas afinações: cebolão, quatro-dedos, castelhana ou três-pontos-da-viola e ré-abaixo. No cururu, nesta mesma região, notamos a preferência pelas cebolão e ré-abaixo, principalmente nos pousos do Divino nas imediações da cidade de Tietê.

Em Taubaté, a afinação usada para dançar o cateretê é: fá sustenido, si, mi sustenido, sol sustenido, dó sustenido.

O cebolão, também boa afinação para sapateado é: ré, sol, si, ré, sol. A cebolinha (simples), boa afinação para cantar moda, e, pestaneando no segundo trasto é ótima afinação para sapateado é: mi, si, mi, sol sustenido e si. A cebolinha (três cordas), ou ré-acima ou cebolinha-pelo-meio, muito usada para execução de solos musicais é: ré, sol, ré, fá sustenido e lá. A cana-verde ou cururu: ré, sol, si, mi, lá. O oitavo ou pontiado-do-Paraná ou guitarra, outros nomes de tal afinação é ótima para fandango e muito usada para pontear uma moda: ré, sol, dó, fá, lá sustenido. Do sossego, também chamada castelhana porque é mais comum usar somente ao tocar, as três primeiras cordas: ré, fá sustenido, lá, dó sustenido, fá. A Quatro-pontos, generalizada nas rádios é como a afinação do violão: lá, ré, sol, si, mi.

Luís da Câmara Cascudo - o papa do folclore brasileiro - assinala outras afinações em "Vaqueiros e Contadores", isto lá no nordeste: mi, si, sol, ré, lá e si, fá, ré, lá, mi.

Oportunamente daremos as afinações bem como as respectivas primeira, segunda e terceira posições.

EMPUNHADURA OU POSIÇÃO


Duas são os maneiras ou posições de segurar a viola: a posição profana e a sagrada. Naquela, o viola fica apoiada no ventre ou mesmo repousa sobre a perna (coxa) do tocador quando sentado. Na posição sagrada, é tocada tão somente em pé, ficando a viola apoiada no colo, senda que o queixo (mento) do violeiro repousa sobre o instrumento. Em geral, quando na posição religiosa, o violeiro fecha os olhos ao dedilhar a viola.

Estas denominações de profana e religiosa que propusemos para as duas posições características de segurar a viola, valem apenas para a região paulista, para a paulistânia. Em nossas andanças pelos 4 ventos do Brasil, em 1951, 1952, 1953, quando estivemos no centro, norte e nordeste, tivemos oportunidade de verificar que a viola é empunhada diferentemente da maneira de nossos caipiras e caiçaras bandeirantes.

O geral, o comum é segurar o braço da viola com a mão esquerda e com a direita dedilhar as cordas. Das várias maneiras de planger as cordas da viola ou "pinicar" como genericamente se referem a esta ação, podemos destacar a mais delicada, maneirosa e suave delas, que é o ponteio, "jeito choroso" para acompanhar as modas de "causos" e "assucedidos" que provocam enternecimento e até lágrimas, bem como o riscado para acompanhar as músicas de cunho religioso como sejam as de folia do Divino ou de Reis, dança de São Gonçalo. Há as maneiras vigorosas usadas em geral para danças: batidas e rasqueado e o maião (malhão, vem de malhar, bater), toque característico do cururu.

Hoje, por causa do descobrimento das maneiras de dedilhar a viola, tais denominações tornaram-se gêneros: rasqueado, batido, ponteio, maião. E tais males são recente, oriundos da improvisação de nossos locutores que, por ignorância ou avidez de apresentar novidades, generalizam tudo.

Tipos de Viola

Tipos de Viola

Dos tipos de violas conhecidos estudaremos os dois encontrados com maior freqüência em nosso Estado: a viola paulista e a angrense ou do litoral. Nossa pesquisa cingiu-se apenas ao Estado de São Paulo. Quanto ao litoral paulista, tivemos a preocupação de estudar a zona litorânea mui ligada ao nosso. Assim sendo, Angra dos Reis e Parati (Estado do Rio de Janeiro) foram visitados e observados por causa de suas constantes ligações com Ubatuba e no sul até Paranaguá (Estado do Paraná) pelas suas relações com Cananéia e romeiros que vêm anualmente até Iguape.

Dos outros dois tipos nos referimos a eles pelo fato de termos conhecido em mãos de migrantes de Estados de Goiás (um baiano que lá morou) e de um boiadeiro matogrossense, que nos facilitou um exame detido em sua viola cuiabana. Tipo idêntico ficamos conhecendo no Museu Paulista que seu diretor, Dr. Sérgio Buarque de Holanda, há pouco trouxe de Cuiabá. Sua caixa sonora é escavada na madeira, e a tampa de trás é colada com cola vegetal.

Em nosso estudo chamaremos de viola paulista àquela encontrada no interior de nosso Estado nos sítios e fazendas estudados e viola Angrense, ou melhor, do litoral, àquela encontrada no litoral paulista e cidades do vale do Ribeira. Será melhor chamarmos de viola do litoral, porque em novembro de 1947, estivemos em Angra dos Reis e constatamos que com o falecimento de antigo fabricante das afamadas violas angrenses, não há mais quem as fabrique naquela cidade sul-fluminense. Ficou no entanto, o tipo. E no sul do Estado, em Cananéia, no bairro de Guaxixi, encontramos um fabricante, cujas violas são absolutamente do tipo angrense, já nosso conhecido. Os dois tipos de viola: paulista e do litoral, que pertenciam à nossa coleção de instrumentos de música, hoje figuram na Seção de Folclore recentemente organizada no Museu Paulista pelo etnólogo Prof. Herbert Baldus.

Vamos tentar descrever os dois tipos de viola, onde ressaltaremos as diferenças marcantes, como seja: construção, dimensões, número de cordas e material utilizado para as cordas.

Tipos de bocas de violas paulistas, feitas à mão em Tatuí, SP.

A viola é um instrumento cordofônio, em que as cordas comunicam sua vibração ao ar. É feita de madeira, compõe-se de uma caixa sonora e uma haste que é popularmente chamada de braço.

Chamaremos de viola Paulista àquela cuja espessura de caixa de ressonância não excede de 7 centímetros, usa dez cordas, ou melhor, cinco cordas duplas, elementos característicos encontrados nos municípios estudados.

Os informe sobre a construção da viola, nome das peças, madeiras empregadas e afinações foram dados pelo Sr. Zico Brasiliano Brandão. O informante é caboclo, natural de Tatuí. tem 37 anos de idade e a sua profissão é fabricante de viola e consertador de máquinas de costura. Dentre os 818 violeiros entrevistados com suas violas, desde 1935 até a presente data, este fabricante de violas é o que maior número de afinações conhece, sendo um ótimo violeiro. Seu pai foi fabricante de violas e um dos mais afamados violeiros e cururueiros do sul do Estado. Contou-nos seu filho que ele conhecia cerca de 25 afinações. Seu filho não apenas herdou "a veia artística", mas também é o seu continuador na fabricação do instrumento. Sua fabriqueta nada mais tem do que uma banca de carpinteiro, as formas para colar os aros e as ferramentas, destacando-se um bom canivete. Fabrica violas de encomenda, conserta instrumentos de corda, e quando tem um bom número de violas prontas, faz viagens para Apiaí, ltararé, Estrada Mayrink-Santos, Botucatu, Avaré, Itapetininga, vendendo os seus instrumentos. Afirma ser bem recebido em todas os lugares onde vai, nunca tendo despesas porque as pessoas do sítio fazem questão de hospedá-lo a fim de que os alegre com suas musicas.

Nas suas viagens, Zico sempre leva sua viola de 14 cordas, cuja caixa de ressonância é feita com a carcaça de tatu, o que provoca admiração dos caboclos. Volta depois de ter vendido todos os seus instrumentos. No Estado do Paraná, são muito conhecidas as afamadas violas de Tatuí.

Zico Brandão, o "Rei da Viola" de Tatuí.

As grandes fábricas de instrumentos da Capital Bandeirante também fabricam violas, havendo o tipo "standard", bem acabadas e bonitas, estreitas, mas não gozam da preferência de nosso caboclo. A industrializada, "standard" é pequena, caixa estreita. A que serve para as exibições nos palcos e rádio, são do tamanho de violões, sendo que a disposição dos trastos é diferente, geralmente estas violas são de cedro ou jacarandá da Bahia.

A viola paulista tem tamanhos diferentes, porém, guardando sempre uma espessura pequena de caixa, em contraste com a do litoral que tem uma caixa muito larga, igual a largura do violão. Zico Brasiliano Brandão, mostrou-nos as formas dizendo serem 8 tamanhos distintos.

O fabricante de violas de Santa Isabel, sr. Lourenço Marques, disse-nos só fazer 3 tipos: pequeno, médio e grande, embora saiba que há intermediários entre esses tamanhos.

Em Piracicaba existiam alguns fabricantes de violas. Nessa "Capital do Cururu" o tipo de viola preferido foi o "mochinho". Juca Violeiro fabricou muitas violas Os melhores "môchos" que conhecemos são de sua lavra. José Barbosa, "modinheiro" dos melhores, é um fabricante de violas. Recentemente inventou fazer a caixa sonora de suas violas de latão. No "Centro de Folclore de Piracicaba" tivemos oportunidade de examinar um exemplar. Afina muito bem, porém, o som é metálico. Alguns cururueiros afirmaram que é muito alta sua afinação, o que os dificulta e cansa cantar a noite toda com tal instrumento.

O tamanho número um, conhecido por Machete ou Machetinho, é o menor, 4 cordas e geralmente usado pelas crianças. Afirma o sr. Zico que antigamente fazia muitos "machetinhos", hoje, porém, depois que apareceu o cavaquinho industrializado, não há mais encomendas.

Compramos para nossa coleção um machetinho no mercado municipal de Paraibuna. O sr. Juvêncio de Sales fabrica, usando canivete, barbante para enformar e cola vegetal. Os furos para cravelha são feitos a fogo. A madeira usada é a "criuvinha".

A viola de tamanho número dois, pouco maior do que o "machetinho", também não tem saída, somente quando uma moça quer ser violeira é que encomenda.

Um duo genuinamente roceiro

(Sertanejo e Sertaneja)

As de número 3 e 4 raríssimamente feitos em Tatuí são os "Mochinhos". São muito procuradas em Piracicaba pelos seus cururueiros. Alguns exemplares desses mochinhos figuram na rica coleção de violas do "Centro de Folclore de Piracicaba", por iniciativa de seu secretário executivo, Prof. João Chiarini.

A de número cinco ou média é a mais procurada, portanto, são as mais comuns, assim afirmou o sr. Zico Brandão, de Tatui e o mesmo disse o sr. Lourenço Marques, de Santa Isabel.

A viola de tamanho número 6 é bastante procurada pelos violeiros pretos. Afirma sr. Zico Brandão: quando vejo um preto me procurar para "apissui" uma viola, já nem mostro as pequenas, já sei e logo vou dando deste tamanho".

As de número 7, geralmente, são para 12 cordas. O entrevistado afirmou: só baiano é que gosta delas". Para os nossos caboclos, qualquer nortista que fale arrastado do "x" é baiano.

A de número 8 é a maior de todas, tendo um metro de comprimento.

Sendo a viola média, de número 5 a mais comum, vamos dar as suas dimensões: 75 centímetros de comprimento. Caixa de ressonância, 35 centímetros, braço 20 centímetros e palheta 20 centímetros. A altura da caixa de ressonância, 5,5 centímetros próximo ao braço e 6,5 noutra extremidade. Boca, 5,5 centímetros de diâmetro.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Caipira na revolução

Causos - A promessa

A PROMESSA

por Márcia Lemos Fonseca

- Dita, 'travessa a portêra, avisa a Comadre Ção que bamo moiá os pé do cruzêro daqui mucadinho, mode vê se chove. Bento, desce pra baxo, avisa o resto do pessoale. Corre 'scriança, 'brevia!... e Rosa tomava as providências, recolhendo as roupas estendidas no varal de arame farpado.
Ali na várzea da Fazenda da Cota, o ribeirão Palmital descia apressado, fartura de água vinda da serra, cortando fundo o chão mole, abrindo caminho pela terra escura, manchada de oca cinza, armando tocaia. Um atoleiro aqui, um sumidouro acolá, buraco largado pela mudança das águas acoli, mas ele continuava, sempre cumpridor da sua sina de ribeirão. Ali os colonos plantavam de ameia com o patrão, e a terra devolvia, abençoada: franja verde, mimosinha, se era roça de arroz; azulega, áspera e barulhenta se era o milho nos beirais do brejo.
Naquela tarde de agosto, porém, frio teimoso, geando ainda, final de panha de café, o que Rosa via era só desamparo: pé de xuxu seco, qualquer aragem esfarelando folha, pé de inhame murcho, tufo de capim esturricado, fiapo de mina minguada, chorinho de água em zigue-zague pelo enrugado do terreno. Nas invernadas o gado desinquieto caminhava pelas beiras de cerca, ora se espalhando pelo escuro das queimadas, procurando broto verde, que o fogo, naquela quadra do ano, surgia do nada, apesar do zelo do patrão, com os aceiros protegendo divisa, preocupação com a mata, os pastos e os cafezais. Mas qual o quê: um descuido, ventinho à toa, e olha o estrago: fogo comendo morro acima, pulando cerca, lambendo arvoredo, queimando mato, madeira de lei, matando sem distinção bicho arisco, criação mansa, um flagelo ao qual só mesmo Deus e Santa Madalena poderiam por fim. Carecendo chuva a lavar a Natureza, amaciando a terra dura, assentando poeira, matando a sede das plantas. Ver o correr da enxurrada pelos cortes da boiadeira, clarão de faísca no meio da noite, ronco de trovão esbarrando no paredão da serra.
Rosa largou a roupa seca sobre o catre e saiu de casa com um facão e uns fiapos de embira. Ali, no monte de lenha, escolheu dois paus roliços, acertou as pontas, lavrou no meio, amarrou com força; fabricou uma cruz tosca que seria levada à frente da procissão. Tirou o lenço da cabeça, estendeu no chão e picou sobre ele folhas de malva. Fez uma trouxa e mergulhou-a na tina d'água, torceu de leve, passando pelo rosto, pelos braços, tirando a poeira, perfumando-se, e as mãos fortes ajeitaram os cabelos. Carecendo um espelho. Fazia tempos que não se via. Andava saudosa de rever seu riso branco, o olhar esperto e meio senvergonho, a cara bonita e lisa. No quarto, o vestido de chita pendurado no prego esperava. Rosa vestiu-o, alisou-o no corpo firme, pegou a bilha d'água, o terço, e estava pronta, quando Comadre Ção aportou, mais a família, cabaça cheia d'água, terço e, na garganta, a voz mais afinadinha de todas, enfeite das cantorias, pois mais fino e tremidinho, só toada de rabeca em folia-de-reis, das bem chorosas. E Rosa, pronta e perfumada, fechou a porta, conferiu com os olhos: a cruz levada pelo menino mais velho ia na frente, o resto da criançadinha ao redor, os cachorros, Comadre Ção e a fé que ela trazia no peito empinado.
Em nome do Pai, do Fio e do 'Sprito Santo... e a procissão seguiu rumo ao cruzeiro de aroeira fincado na frente da casona fazendeira.
Avisada, Liguininha com a filharada mais o marido vieram engrossar a procissão. Negra alta e sacudida, mãe de treze meninos, quando saía com a família, era ver casal de jacu com a ninhadinha atrás: montoeira de jacuzinho tudo encarriado, acompanhando cada passo da mãe. Tal e qual. Liguininha, Rainha Conga, dançarina, torradeira de café e tacheira da fazenda. De janeiro a março era doce de goiaba: cascão, de caixeta, em calda. Doce de pêssego, marmelada, meiando dezembro. Arrumação de capado, fabricação de sabão de cinza, em qualquer época. Liguininha ajeitava o vestido amassado. Tirado do baú, com certeza, já cantando forte, fazendo dueto:
“ ...Bendito seja Jizuis, José,
Joaquim, Ana e Maria
Eu vos dô o meu coração,
E arma minha, inté a úrtima agoniiiiiiaaaaa!...”
O vento soprava forte, vindo das bandas de São Tomé, do Morro do Cascalho, enquanto, aumentada a cada eito caminhado, seguia lentamente a procissão pela boiadeira poeirenta. Agora, a tapera do Izé Largato, à esquerda, mulato surdo e cambaio: estrago produzido por dois raios caídos em seu terreiro, um na porta da cozinha, e o outro do lado de lá, mais pra banda do poleiro das galinhas. Seu Izé ficou medroso com o acontecido: rezou terço no lugar, benzeu, quis mudar de morada, mas o patrão tirou-lhe a idéia, falou que aquilo era por conta dos três jatobás plantados em roda da casa, madeira de cerne, chamadeira de faísca. Rosa pensava diferente: “castigo caído na pessoa errada; aquilo era mode a Chica, mulher dele, sujeita sem pacença, espancadeira de criança e enfezada com os vizinho e com o marido lá dela” Pois com os das outras, Chica era mansa, dengosa, e o mais pior de tudo: dispensava o uso de roupa miúda. “Mode facilitar a safadeza.”
O frio aumentado avisava que a lagoa vinha chegando, água mansa, espraiada, forrada de areia branca e pedregulho, limpa e farturosa de lambarizinhos, que naquele fim de agosto já nadavam de banda, lombinhos rebrilhando, caçando remanso mais fundo.
Na tapera de pau-à-pique, Sá Mariana esperava: a saia comprida, bata rodada, cuité cheio d'água nas mãos velhas, era um fervor só, sabedora da armadilhas da vida, das tramas do destino, parteira antiga, enxergadeira de muitas surpresas boas e más na aparação da criançada da fazenda, daquelas abas de serra, grotas, furnas e escondidos das encostas. Carecia banhar os pés do lenho santo, pedir clemência, fazer louvação. O marido, sentado no calcanhar, pitava no pito de barro, soltando baforadas, o cheiro de fumo exalando. Nem aluiu. Ali mesmo ficou, sistemático, sisudo. “Feiticero, Coisa-Ruim, criaturo do Cão!...”, pensava Rosa, diante do desrespeito do velho serrador. Alteou a voz, em desagravo:
“ Grória ao Pai, ao Fío, Spríto Santo.”
Mais adiante, o terreiro varrido falava do asseio da moradora. De um povo de Muchôco, gente cuidadosa com o que era seu, tratava tudo com um capricho de dar gosto. Banho tomado, gordura nos cabelos das crianças e da mulher, mode assentar os fios mais renitentes. E a botina domando os pés do homem: Tião era retireiro; Geralda, lavadeira da fazenda. Sentia, pela patroa, amor de filha: dona Adélia acabara de criar a menina enjeitada pela madrasta, as orelhas rasgadas para a eternidade, brincos arrancados no muque, pela bandida. “Ô judiação, ô desamparo... Sá Geralda, tão boa, tão sacudida, tão asseadinha. De defeito, só a voz de gralha, fanhosa, áspera, esquisita”, Rosa pensava. Quando Ção, adivinhando seus pensamentos, cochichou: - Sá Gerarda azanga a reza de quarqué um; mania de cantá co'a goela presa. Campanha!!!
A travessia da lagoa foi lenta e cuidadosa: um erguer de saia, arregaçar de calça, e todos enchendo as vasilhas: bilhas, canecas boca-de-piranha, de folha, guampo de boi, vidro vazio, de coalho, cuité. Até caramujo. Tudo era de valia, o Santo não arreparava, não tinha luxo. O importante era a agüinha levada com fé.
Lobo guará uivou no cerrado, vento ventando forte, ajudando a esfriar a tarde. A cava funda reorganizou a procissão, que já se aproximava da casa velha da Cota antiga. O areal, o óleo frondoso, uma cascavel dependurada no arame da cerca, um capão de pita, cana-da-índia, lobeira. No coqueiro seco, tucano fez ninho: apareceu, espichou o pescoço, olhou de banda, se escondeu. Saído do trilheiro de gravatá, João Peão lá evinha, com a viola nos braços, o chapéu assombreando o olhar de candeia, sempre sozinho, escoteiro. Viúvo, não casou mais. Vivia ele mais a viola, que quando tocava, abraçava apertado, cabeça inclinada, assim, amoroso... “Pareceno que tá agarrado é na muié. Êh, consumição!...”, pensava Rosa, entre triste e alegre. Pois João Peão pinicou os dedos nas cordas afinadas e a mulher cantou, feliz:
“ Lovano a Maria, o povo fié,
a voz repetia, de São Gabrié!...”
O telhado da Fazenda aparecia, agora, os ranchos de arreamento, dos bezerros, curral, monjolo, munho de fubá, paiol, galinheiro, a bagaceira, o engenho de cana, e na frente da escadaria, o cruzeiro, rodeado de manacás, em cima do barranco de grama rala, da banda de cá do córgo.
O coração de Rosa bateu apressado, os dedos se fechando com força sobre as contas do rosário. Olhou assim, meio aflita. Foi quando avistou o marido desatrelando a boiada carreira. Um meneio de cabeça, um piscado de olho dele, e ela entendeu: ia esperá-la ali mesmo, no rancho, voltariam juntos para casa; ia esperá-la com seu cigarro de palha pendendo no canto da boca, sua calma, seu cheiro de guiné, que acendia o corpo de Rosa.
Jarra de louça nas mãos, a fazendeira mais as filhas já desciam a escada. Um povão, uma beleza. No alpendre, o patrão ergueu o corpo, tirou o chapéu, em sinal de respeito, mas não desceu; dali mesmo rezava. Ao longo da calçada de pedra, as empregadas e os colonos se achegavam, vieram quase todos, e a cerimônia teve início. Rosa limpou a garganta, olhou, conferiu em volta, fez sinal pra companheira, e o canto ecoou, afastando o silêncio da tarde fria:
“ Bendito sejada, morô bom Jizuis, Remeno, chorano, pregado na cruiz. Pregado na cruiz, padeceno dor, Derramano sangue por nós, pecadô!...”
E a água ia sendo derramada lentamente por cada um, escorrendo pelo tronco ressecado do velho cruzeiro, juntamente com cada pedido de chuva, feitos com toda fé. O canto prosseguia:
“ Santa Maria Madalena,
vai pedi Nossa Senhora
Que chove, aqui na terra,
o tanto que nos móia.
Dai o pão que nos consola,
Pequenos e grandes
morreno de fome!...”
No seu tempo e ordem, deu-se a reza, a ladainha devidamente costurada pela voz do mulherio, tudo bem de conforme, pra que o pedido surtisse efeito. Dali a um pouco, cumprida a promessa e terminada a louvação, Rosa se benzeu, deixando atrás de si a velha cruz de aroeira úmida ainda pela água derramada sobre a madeira; sobre o chão, mancha escura, mijo de boi carreiro, parecendo. O povo se dispersava, voltando ligeiro, criança correndo na frente, menino pequeno pedindo colo, naquele apressado de regresso, eco de voz de alguém, sumindo lá adiante:
Vão' simbora, que a noite lá evém!...
Seguido dos filhotes, o casal atravessou de volta o areial, a cava e a lagoa mais embaixo, na estreita pinguela entre barrancos, pois molhar os pés àquela hora era caçar doença, assunto desconversado. Rosa virou-se, protegendo os olhos, agarrando-se ao marido, quando um vento forte de poeira desceu varrendo o cerrado e a boiadeira, trazendo terra, folha seca, cisco e mais frio.
Vento sem banda, diacho!... exclamou o homem protegendo a mulher, curvando o corpo, apertando contra o seu o corpo macio dela, sua cintura de viola, descansando a mão forte em suas ancas de escora. Rosa gostou, passou as unhas de leve arranhando em agrado os braços de seu homem, sorrindo feliz. Rosa do cheiro de malva, seu sumo de mulher. Os desejos. A lua cheia, lampião no céu, se escondeu atrás do lençol de nuvens, e a noite desceu.
Quando Rosa estendeu o braço procurando o trinco da porta, um clarão ligeiro norteou seus olhos. Assustada, a mulher entrou, conferiu o marido e as crianças naquela semi-escuridão, e um novo clarão mais demorado, um acende-apaga, uma luz em zigue-zague rabiscou o céu. Um tremido forte, um ronco de trovão ecoou na imensidão do escuro. Rosa se benzeu, agradecida, e sorria ainda, quando a porta se fechou sobre a noite, que decerto prometia chuva.

Márcia Lemos Fonseca é escritora, autora do romance "Passagem do Agreste", residente na fazenda Goiabeiras, em Três Corações-MG.

A Literatura da Viola

A transmissão da arte de se tocar viola

A TRANSMISSÃO DA ARTE DE SE TOCAR VIOLA

por Rui Torneze
ilustração Júlio Vaz/Reprodução

Certa feita, uma aluno ja adulto, o Cristiano, de origem interiorana lá das bandas de Guaratinguetá-SP, me procurou ávido para o aprendizado do instrumento. Disse-me que seu avô é violeiro na sua região, mas que sempre ao interpelá-lo nas questões relativas aos toques da danada, a resposta era sempre a mesma: "viola não se ensina e se ensiná é bem capaz que o tocador perca a arte". Ao saber que o neto estava sendo iniciado e interessado mesmo, aí é que passou a nem mais tocar por perto, com medo de ter sua magia subtraída pelo rapaz.

Alguns meses depois, ao ver o neto já com relativa desenvoltura ao instrumento, ficou o avô muito contente e passou a convidá-lo para tocar junto, acreditando talvez que a fase mais delicada da "absorção" já teria seu nefasta efeito dado como inócuo.
Confesso que no início do meu aprendizado, há muitos anos atrás, deu-se também nesse mesmo universo. O violeiro observado não podia desconfiar que estava tendo seus toques anotados ou que estava sendo assistido por um interesse além da simples admiração. Perguntar algo sobre os toques? Jamais!
Essa crendice deve ter atrasado a vida de muita gente boa e certamente teve seu efeito contrário.

Sempre digo aos meus alunos que aprendo muito mais com eles com eles do que eles pensam que estão aprendendo comigo.

Viola, hoje em dia, se ensina sim senhor! Vide a Universidade de Brasília - UnB e a Universidade Livre de Música Tom Jobim - ULM - em São Paulo, formando a vanguarda dos violeiros e garanto que os respectivos mestres estão ficando cada vez melhores, quanto maior a horda de seus pupilos.

Porém uma coisa é certa: a parte mais interessante do estudo é o contato em campo direto com os violeiros matutos e sua cultura, pois só assim, bebendo-se diretamente da fonte, é que as sutilezas e as minúcias dos toques regionais e aquele sotaque caipira na execução do instrumento poderão ser assimilados.

A arte da viola caipira nasceu no seio do povo e este é o depositário de sua cultura. Aquele que tem a vontade de dedilhar o instrumento pode até não ter a consciência disso, mas é como um filão de uma jazida, pois já carrega dentro de si preciosas pepitas, bastando apenas que a terra seja revolvida, colocando tais preciosidades ao brilho do sol.

Sou um desses garimpeiros de viola.